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Foto extraída da página da Salvaguarda da Capoeira na Bahia |
O Conselho Gestor da Salvaguarda da Capoeira na Bahia vem por
meio deste manifestar seu repúdio às práticas de culto evangélicas que vem
sendo divulgadas sob o nome de “capoeira evangélica” ou “capoeira gospel”. Em
primeiro lugar, repudiamos a utilização do nome “capoeira”, visto que o que se
viu em vídeos circulados pelas redes sociais nada tem em comum com a capoeira:
nem o ritmo, nem as cantigas, nem a movimentação, e principalmente nem os
princípios e fundamentos. Tudo que foi reconhecido pelo Iphan como patrimônio
cultural brasileiro, baseado em fundamentos e tradições, está ausente desta
prática.
O que foi
reconhecido como patrimônio cultural do Brasil e da Humanidade é uma prática
cultural de matriz africana, que tem por base uma visão de mundo, musicalidade
e corporalidade herdadas de povos africanos e que foi marcada profundamente
pela experiência histórica e social da população negra no Brasil durante a
escravidão e no pós-abolição.
A capoeira não é
uma religião e não tem uma religião, como muitos capoeiristas salientaram no
debate gerado pela veiculação destes videos, e a fé professada por cada
capoeirista é tão variada quanto pode ser a religiosidade do brasileiro. A
capoeira, porém, tem elementos culturais, simbólicos e espirituais comuns com
as religiões de matriz africana, pois parte de uma mesma matriz histórica e
cultural: é baseada no princípio da energia vital, o axé, que inclusive se
transformou na saudação mais comum em meio à capoeira, independente de estilos
e linhagens. O axé, como todos sabem, é o princípio vital cultivado pelas
religiões de matriz africana, significando força, expansão, saúde, potência e
vitalidade. O povo da capoeira faz parte do povo de axé. A capoeira é também
baseada na louvação a Deus e aos protetores espirituais (santos e orixás), que
com frequência são invocados nas cantigas. Esta louvação se estende à ancestralidade,
a todos os Mestres que criaram e transmitiram os conhecimentos da Capoeira, até
os nossos dias. Estes mestres, nossa ancestralidade viva, foram reconhecidos
pelo Iphan como elo fundamental da cadeia de transmissão deste conhecimento, e
portanto se tornaram foco da patrimonialização.
Além disso, a
capoeira tem uma estrutura comum a diversas manifestações culturais
afro-brasileiras, a roda, que também foi identificada pelo Iphan e pela Unesco
como expressão central e eleita como objeto da patrimonialização. O Iphan já
identificou, no parecer que encaminhou o pedido de Registro ao Conselho
Consultivo do Patrimônio Cultural (Parecer n° 031/08, da antropóloga Maria
Paula Adinolfi – SE/BA), que a capoeira compartilha a roda, como elemento
estruturante, com outras práticas culturais afro-brasileiras, como o jongo, o
samba, o tambor de criola e diversas religiões afro-brasileiras, assim como a
orquestração dos instrumentos, a rítmica e o repertório das cantigas é comum a
várias dessas práticas, o que revela que todas tem por base as culturas
africanas, principalmente da África Banto, da região que hoje corresponde a
Angola, Congo, Moçambique, entre outros.
Todos os
elementos acima elencados são indissociáveis da capoeira, e qualquer prática
que os rejeite, proscreva ou modifique entra em rota de colisão com o que é
reconhecido como patrimônio cultural do Brasil e da Humanidade, configurando
descaracterização e dano ao patrimônio cultural do Brasil.
Tendo em vista o
exposto, vimos requerer à Presidência do Iphan:
1. A atenção à
propriedade intelectual da comunidade da capoeira, afetada pelo uso indevido e
pela apropriação indébita do nome “capoeira” por práticas de culto pentecostal.
Solicitamos providências imediatas através de medidas extra-judiciais ou judiciais
que se fizerem necessárias para resguardar o nome “capoeira”, que designa uma
Expressão do Conhecimento Tradicional protegida pelo Estado brasileiro, através
do Registro como patrimônio cultural, nos termos do Decreto n. 3551/2000, e que
não pode ser aplicada a outras práticas que deturpem seus fundamentos. A
atenção à propriedade intelectual e aos direitos coletivos das comunidades
detentoras do patrimônio imaterial é um dos tipos de ação de salvaguarda
prevista na Portaria n° 299 de 17 de julho de 2015, que solicitamos que seja
cumprida pelo órgão.
2. A exclusão
dos cultos pentecostais que se apropriam indevidamente do nome capoeira de
qualquer ação de fomento, incentivo, promoção, difusão e outros tipos de ação
de salvaguarda promovidas pelo Iphan ou por órgãos parceiros, nas esferas
estaduais e municipais, que façam parte das políticas de salvaguarda.
Solicitamos que todas as Superintendências do Iphan no Brasil sejam devidamente
informadas sobre esta diretriz, garantindo que não sejam destinados recursos
financeiros, materiais, humanos ou de qualquer tipo a ações promovidas por
grupos de “capoeira gospel”, assim como que seja interdita sua participação em
Coletivos Gestores da Salvaguarda, uma vez que as ações promovidas por tais
grupos e indivíduos vão de encontro aos princípios da capoeira que devem ser
salvaguardados, conforme demonstrado acima.
3. A promoção de
uma grande e massiva campanha de divulgação, em todos os estados brasileiros,
sobre as características dos bens culturais patrimonializados, a Roda e o
ofício de Mestre de Capoeira, ressaltando nos vídeos, publicações e peças de
divulgação desta campanha a matriz afro-brasileira da capoeira e sua vinculação
com outras práticas culturais pertencentes à mesma matriz. O título sugerido
para esta grande campanha nacional, a ser custeada pelo Iphan e produzida em
parceria com os Coletivos Gestores da Salvaguarda, é “Capoeira tem axé!”.
Certos de sua
atenção para com a salvaguarda desta que é uma das mais importantes e marcantes
formas de expressão cultural da nação brasileira, e de seu compromisso com o
cumprimento do que dispõem a Constituição Federal e o Decreto 3551/2000,
subscrevemos.
Fonte:
O Conselho Gestor da
Salvaguarda da Capoeira na Bahia
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